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Romanos 10.14...
"... Como pois invocarão aquele em quem não creram? e como crerão naquele de quem não ouviram falar? e como ouvirão, se não há quem pregue?..."

7 de fev. de 2010

A TERCEIRIZAÇÃO DO EVANGELHO


O mundo dos negócios, com seu capitalismo, exerce influência em todas as esferas da sociedade e acaba alterando a organização do tecido social. A despeito disso, a grande maioria não entende qual a influência que o fenômeno da globalização — através dos blocos econômicos — exerce sobre sua vida.

Uma das decisões estatais mais criticadas é a privatização, ou seja, a transferência da administração de um empreendimento público para o setor privado ou particular. Por seu turno, as corporações particulares descobriram uma forma de aumentar seus rendimentos com a terceirização. Segundo o Dicionário Houaiss, a “prática desta medida administrativa surgiu nos Estados Unidos antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, consolidou-se a partir da década de 1950, e foi introduzida no Brasil pelas fábricas multinacionais de automóveis”.

O mesmo léxico define terceirização como “ato ou efeito de terceirizar”; “forma de organização estrutural que permite a uma empresa transferir a outra suas atividades-meio, proporcionando maior disponibilidade de recursos para sua atividade-fim, reduzindo a estrutura operacional, diminuindo os custos, economizando recursos e desburocratizando a administração”. E ainda: “Contratação de terceiros, por parte de uma empresa, para a realização de atividades geralmente não essenciais, visando à racionalização de custos, à economia de recursos e à desburocratização administrativa”.
De um tempo a esta parte tornou-se comum — nos círculos evangélicos — copiar-se modelos de liderança com base em programas seculares de gestão de pessoas e business. Uma outra prática (essa quase inacreditável) é a concessão de franquias, onde alguém paga 500 mil reais pelo direito de usar o nome institucional de uma denominação!

Mas não é o objetivo deste artigo discutir os perigos da terceirização em sua expressão organizacional, estrutural e administrativa no âmbito eclesiológico. Não é o macro-ambiente o objeto desta discussão. O foco é justamente o micro-ambiente — a vida privada, pessoal, familiar, ministerial, vocacional —, que, se analisadas, mostrarão que estamos vivendo um período de transferência de responsabilidades sem precedentes.

O EXEMPLO DOS APÓSTOLOS

Geralmente quando alguma coisa é tida como básica ou primária, a impressão que se tem é que pode ser prescindida e que não tem importância. Nada mais errado. A primeira acepção de básico o define como aquilo “que faz parte da base”. Tudo que é básico é fundamental, primordial e essencial, ou seja, é o mais importante! Tire as bases, retire a fundação de uma casa ou edifício e veja o que acontece.

A Igreja não pode supervalorizar o periférico em detrimento do arterial e basilar. Nesse aspecto, o exemplo da história é muito apropriado, pois precisamos sempre perguntar: “Para que a Igreja foi criada?”

A Igreja como Agente de Deus e Corpo de Cristo têm que cumprir aquilo que lhe é básico. Ela é o instrumento de disseminação da missão redentora na Terra, e isso não no sentido de adicionar algo ao trabalho efetuado pelo Senhor Jesus, mas de facilitação do acesso das pessoas à obra vicária e expiatória de Cristo.

Em Atos dos Apóstolos 6.1-7, o evangelista Lucas narra um acontecimento que ameaçava a koinonia existente na Igreja Primitiva, podendo haver até mesmo solução de continuidade. Não está em pauta o fato indiscutível de que as viúvas não poderiam permanecer desassistidas ou que os ministros achassem menos honroso “servir às mesas” (mesmo porque o significado de ministro é “criado, servo, servidor”). A questão é claramente entendida não em termos de Missão Integral, mas de distribuição das tarefas do Corpo. Qual a função dos diversos dons e membros no Corpo? Como dizem os teólogos, este é o ponto.

A conclusão dos apóstolos não poderia ser mais acertada quando disseram: “Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas” (v.2b). Porém, como demonstração de que o trabalho social era importante, eles decidiram escolher “sete varões de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria” para cuidar deste “importante negócio”. O crescimento trouxe a necessidade de gerir de maneira inteligente as coisas do Reino.

Em que os apóstolos se ocupariam, ou melhor, continuariam ocupados? Eles permaneceriam naquilo para o qual foram chamados, dedicando-se à “oração e ao ministério da Palavra” (v.4; NVI).

Inegavelmente, essa sábia decisão de passar a tarefa aos sete homens de espiritualidade semelhante à dos apóstolos, mostra que o trabalho não deixaria de ser feito, que a qualidade — amor, dedicação — continuaria assegurada e que eles possuíam competência administrativa para gerir os assuntos do Reino.

Em síntese, o exemplo dos apóstolos é muito apropriado, pois, eles não terceirizaram sua atividade básica e primária para atender uma necessidade igualmente importante, mas também não deixaram de cumprir a Missão Integral do Reino. A solução foi estabelecer alguns critérios para a ocupação ministerial — vida ilibada, sensibilidade espiritual, conhecimento e ação correta —, e permitir que a Igreja elegesse pessoas para cumprir tal tarefa. Resultado: expansão do Reino.

 Diferentemente, estamos assistindo na atualidade um gradual processo de terceirização e transferência de obrigações que nunca deveriam ocorrer. O pior é que não se abre mão de uma tarefa para assumir uma outra com relevância equivalente, mas o tempo e a disposição são ocupados com atividades que prestam um verdadeiro desserviço ao Reino e enfermam as igrejas locais. Sob a égide da chamada “vida privada”, muitos cristãos estão negligenciando suas funções religiosas e espirituais, trazendo morbidez e comodismo às suas famílias. Vejamos algumas áreas-chave que foram terceirizadas:

A TERCEIRIZAÇÃO DO PECADO

O exemplo clássico é o de Adão e Eva na Queda. Um tentou transferir sua culpa para o outro, depois para a serpente e quase que apresentavam Deus como o culpado (Gn 3). Aliás, isso é comum nos dias de hoje, pois a transgressão é vista como um “mal coletivo” e não uma culpa individual. Ninguém quer assumir seu próprio pecado, a culpa é sempre de um terceiro. Como os principais elementos para a busca do perdão são o reconhecimento e o arrependimento, parece que estamos vivendo um momento dramático.

A TERCEIRIZAÇÃO DA ORAÇÃO

Após a fundação do Círculo de Oração, muitos acharam que só as irmãs devem orar e então terceirizaram a oração. Isso também aconteceu porque se perdeu a noção do que é orar. Inclusive, a precariedade do relacionamento com Deus no século 21 se deve a dois fatores principais: o equívoco de acreditar que Deus não precisa nos orientar nas pequenas decisões do dia-a-dia e a redução do principal momento de diálogo com Deus — a oração — em unicamente pedir, gerando assim, a mania do determinismo. Só se ouve alguém dizer: “Ore por mim”.

A TERCEIRIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO CRISTÃ DOS FILHOS

Essa é uma das mais evidentes, visto que quando se trata de dimensionar os filhos de cristãos que estão na Igreja, os dados são alarmantes. Muitos pais deixaram de realizar o culto doméstico, outros mais novos, nem sabem o que é isso. A maioria acredita que a obrigação de educar seus filhos cristãmente é dos professores de Escola Dominical e do pastor. Estão esquecendo de fazer a lição de casa contida em Efésios 6.4. Os professores e a liderança têm a sua parte, porém, a educação cristã básica é dever intransferível dos pais. Não se pode terceirizar!

A TERCEIRIZAÇÃO DO ACONSELHAMENTO

Como Corpo de Cristo é nosso dever preocuparmo-nos uns com os outros (Fp 2.4). O Senhor Jesus ensinou que se virmos nosso irmão errando devemos admoestá-lo (Mt 18.15-17). Entretanto, a mentalidade individualista instilada em muitos cristãos é que isso é dever do ministério. Terceirizaram o aconselhamento que é da competência de todo o Corpo e o substituíram pela cumplicidade, omissão ou pela difamação. Parece que perdemos o senso de que somos um em Cristo.

A TERCEIRIZAÇÃO DO EVANGELISMO

A Grande Comissão é uma incumbência da Igreja (Mt 28.19,20). É uma espécie de força-tarefa em que todos os dons ministeriais atuam. Infelizmente, após a invenção de grupos de evangelismo, meia dúzia sai aos domingos à tarde e noventa e cinco por cento fica cuidando de seus afazeres ou descansando no “dia do Senhor”. A terceirização do evangelismo subtrai o mandato da Igreja e tolhe a expansão do Reino. Porém não devemos nos esquecer do que Jesus disse em João 15.14.

A TERCEIRIZAÇÃO DA OBRA MISSIONÁRIA

A distinção entre missão local e transcultural é feita somente por nós. Jesus está interessado na evangelização mundial e deixou isso muito claro (Mc 16.15-20). Por incrível que pareça, essa prerrogativa inadiável também foi terceirizada, ocasionando oportunidade para espertalhões. A obra missionária é dever da Igreja, não de entidades paraeclesiásticas. Reconhecemos o trabalho de agências missionárias sérias, porém, devido à omissão, muita picaretagem tem surgido por aí. A Igreja precisa viabilizar as condições para pessoas vocacionadas desenvolverem seus ministérios, ajudando-as até mesmo a fazer um curso da língua vernácula do país pretendido, estudar a cultura etc.

CONCLUSÃO

Estamos nos auto-saqueando e isto custará muito caro. Os prejuízos dessa negligência premeditada já se fazem sentir em nossos arraiais. Poderíamos falar ainda da terceirização da responsabilidade, da formação de obreiros, do avivamento, da função profética etc., porém, esperamos que esta reflexão inicial abra a possibilidade de uma discussão para que nos auto-avaliemos e nos reposicionemos — urgentemente — reassumindo nossas tarefas, para que não soframos o colapso que acomete a todos que padecem do mal chamado triunfalismo.

Publicado originalmente no Mensageiro da Paz, número 1.470, ano 77, novembro de 2007, p.16.

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