Imperdoável, segundo meu conceito
Zé Luís
Quando entrei na igreja, ganhei um chato crente que me acompanhava - e policiava - cada passo que eu dava. O sujeito teve a pachorra de aceitar uma vaga de emprego na minha empresa, mesmo não sabendo nada sobre o ofício, para trabalhar ao meu lado, quando eu era corretor (graças a Deus pela vida daquele chato inoportuno).
Ele queria me ensinar tudo que sabia sobre igreja, sabe lá Deus porque. Deu-me livros (hoje, rio: “Bom dia Espírito Santo”, do Benny Hinn, Esse Mundo Tenebroso, a 4ª Dimensão, entre outros) e fitas K7 com pregações sempre vinham parar em minha mão. Nelas, muitos testemunhos fantásticos (alguns fantásticos demais) e pregações, muitas pregações. Ele queria me ver convertido de qualquer maneira.
Entre as dezenas de mensagens , um pregador ali me emocionou muito: sujeito conceituadíssimo, com dezenas de livros escritos e referência para muitos pastores quando se falava em seriedade com o Evangelho.
Numa delas, pregava informalmente sobre o rei Manassés, filho de um dos melhores reis que Judá, Ezequias. Ironicamente, Manassés fora um dos piores.
Segundo o que consta nas Escrituras (2 Reis 21:1-18 e 2 Crônicas 33:1-20 ), tudo que o pai lutou para desfazer em sua terra, ele reedificou: restabeleceu cultos pagãos numa sociedade conhecidamente teocrática. Segundo a crença, por exemplo, para se restabelecer culto a Moloque, devia-se queimar o primogênito e o caçula em oferenda àquele deus, o que fez sem pestanejar. Usava necromantes, médiuns, feiticeiras.
Além disso, matou muitos, e não poucos inocentes assassinados por ele. Segundo relatos, foi ele o responsável por Isaías, o profeta, ter sido serrado ao meio, ainda vivo, após ter sido colocado dentro de um tronco oco.
No texto prolongado que o pregador fez questão de ler, ele conta a forma que Deus o castigara, fazendo que um exército estrangeiro capturasse o agora velho rei, levando-o cativo com ganchos no nariz e no queixo, por uma distância de setecentos quilômetros, algo como a distância entre São Paulo a Belo Horizonte.
O ponto alto do texto, contudo, que no meu pobre entendimento já havia sido (nada mais natural: o rei fez o mal, Deus o puniu, fim de história), ainda estava versículos à frente: O rei perverso, cativo e isolado, se arrepende, e acontece o inconcebível - Deus o perdoa.
Perceber a misericórdia de Deus alcançando quem claramente não merece (segundo meus conceitos do que é e do que não é justo) causa certo incômodo. Percebi que o céu pode não ser o paraíso dos pacíficos: gente perigosa, digna do inferno, pode estar habitando lá. Ou seja, um perfil bem diferente do ideal piedoso e altruista que o meu entendimento naquele início de caminhada cristã podia antever .
É dado ao rei a chance de voltar a sua terra, o que faz, e usa seus últimos dias restaurando o que havia destruído. Danos causados por 55 anos de reinado e que demandarariam mais do que o dobro deste tempo para serem desfeitos, afora as vidas perdidas nos assassinatos que praticou, essas irrecuperáveis.
Mesmo assim, Deus o perdoa.
O pregador concluí: muitos de nós somos infinitamente melhores do que o perverso Manassés, mas mesmo assim, não cremos que Deus é capaz de nos perdoar.
Manassés assume o trono aos doze, e por meio século comete as piores atrocidades, contra sua família, seu povo, seu Deus, isso de forma consciente, já que ele é rei do povo que detém às Escrituras.
Naquela noite, quinze anos passados, após ouvir e me emocionar com essa mensagem, dormi em paz, entendendo melhor sobre o quanto Deus é capaz de perdoar e quanto o meu caso não estava tão complicado quanto imaginei.
Semanas depois, o tal pregador apareceu no jornal da TV, envolvido em escândalos políticos e pessoais. Alguns pastores vieram a público criticando-o (o que me parecia despeito, ou inveja), e o tal homem sumiu por anos. Secretamente, nunca deixei de acreditar em tudo aquilo que ele pregava, embora muitos o chamassem (e chamam) de caído. Curiosamente, ele foi extremamente receptivo quando o contatei por e-mail anos atrás, quando ele permitiu ser encontrado pela internet...
Mas isso já é outra história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário